domingo, 16 de julho de 2023

Evolução dos conceitos de adubação verde

 

A adubação verde – prática agrícola de conservação do solo – é conhecida e utilizada desde antes da Era Cristã para recuperar os solos degradados pelo cultivo, melhorar os solos naturalmente pobres e conservar aqueles produtivos. Com a Revolução Verde, a partir dos anos 1960, a adubação verde perdeu, temporariamente, sua importância com o surgimento e desen­volvimento de máquinas, equipamentos e insumos modernos. No entanto, a partir dos anos 1980, foi exatamente com o uso dos adubos verdes que a agricultura deu um salto de qualidade. Os adubos verdes tornaram-se componentes fundamentais em arranjos de sucessão e rotação de culturas, que viabilizam tanto o sistema plantio direto quanto a integração lavoura-pecuária e os sistemas agroecológicos de produção. 

Em razão do número de espécies já conhecidas e de suas respectivas características agro­nômicas e fenológicas, os adubos verdes podem ser cultivados de inúmeras maneiras, nos mais diversos tipos de arranjos e configurações, para viabilizar o uso e o manejo sustentável do solo e a produção de alimentos de qualidade. 

O presente capítulo tem por objetivo discutir a evolução dos conceitos de adubação verde, bem como caracterizar as várias modalidades de cultivo dos adubos verdes no Brasil. 

Evolução dos conceitos de adubação verde 

O cultivo de plantas para a recuperação de solos degradados é uma prática agrícola de conhecido efeito benéfico ao solo, cujo resultado era mostrado na abundância da colheita da safra seguinte, desde 5000 a.C. Nos relatos escritos por chineses, gregos e romanos, sempre ficou evidente a necessidade da incorporação do adubo verde para promover o seu efeito (Souza; Pires, 2002; Amabile; Carvalho, 2006). Catão, Columela, Plínio, Varrão, Virgílio e Teofrastus fizeram referências ao emprego das leguminosas para adubação verde, mencionando a preferência por essas espécies (Kiehl, 1960). 

No primeiro documento que se tem registro oficial no Brasil, D’utra (1919, p. 1) já relatava 

[...] o efeito melhorador das culturas de enterrio [...], mas que [...] o êxito desse efeito e a importância prática dos adubos verdes depende do estudo e da escolha das espécies a cultivar, das caracterís­ticas edafoclimáticas e das circunstâncias econômicas de cada local e da cultura que se pretende beneficiar. 

Essa afirmativa já era um alerta para técnicos e agricultores quanto à necessidade de conhecer detalhadamente cada espécie cultivada para que fosse empregada da melhor forma possível. 

Em 1959, Kiehl lançou dois conceitos que ficaram conhecidos e foram amplamente aceitos até os anos 1980. Denominou adubo verde como “[...] a planta cultivada ou não, com a finali­dade precípua de elevar a produtividade do solo com a sua massa vegetal, quer produzida no local ou importada” (Kiehl, 1960, p. 1). Segundo o autor, a adubação verde caracteriza-se por ser “[...] a prática de se incorporar ao solo massa vegetal não decomposta, de plantas cultivadas no local ou importadas, com a finalidade de preservar e/ou restaurar a produtividade das terras agricultáveis” (Kiehl, 1960, p. 1). 

Miyasaka (1984), que ratificou e ampliou tal conceito, afirma que a adubação verde é a prática de incorporação de espécies vegetais ao solo, tanto de gramíneas quanto de outras, naturais ou cultivadas, nas terras em alqueive. No entanto, ele registrou que o uso de leguminosas constituía a prática mais racional e difundida para essa finalidade. 

Com base nessas definições, pode-se dizer que estava implícita nesses conceitos uma “visão química”, cujo requisito era a incorporação da massa vegetal (fitomassa) ao solo, com o objetivo de melhorar a sua fertilidade (propriedades químicas do solo = reciclagem de nutrientes e recuperação dos níveis de matéria orgânica do solo). 

As plantas utilizadas para esse fim recebiam as seguintes denominações: adubo verde (português), green manure (inglês), gründünger (alemão), abonos verdes (espanhol), engrais vert (francês), entre outras. Já a prática do cultivo dessas plantas era denominada adubação verde (português/Brasil), green manuring (inglês), gründüngung (alemão), sideração (português/ Portugal) e fumage vert (francês). 

A Revolução Verde, implementada a partir dos anos 1960, promoveu a modernização da agricultura brasileira, uma vez que colocou à disposição dos agricultores sementes melhoradas, fertilizantes e corretivos, defensivos, máquinas e equipamentos agrícolas. Esse conjunto de in­sumos, ditos modernos, intensificou o processo produtivo e proporcionou a ampliação da área cultivada e o aumento da produtividade das culturas no País. No entanto, apesar dos benefícios alcançados, a Revolução Verde trouxe vários inconvenientes: o uso inadequado e o revolvimento excessivo do solo pelas máquinas, que provocou a desestruturação (pulverização) da camada superficial; o aparecimento de camadas compactadas na subsuperfície e a diminuição dos níveis de matéria orgânica, resultando em elevadas taxas de erosão e, finalmente, em degradação do solo. 

Na busca de soluções para esses problemas, agricultores e técnicos valeram-se de ensi­namentos antigos, além de observações e resultados de pesquisa de outros países. Apesar de a maioria dos relatos antigos sobre adubação verde deixarem claro o procedimento do enterrio da massa vegetal não decomposta, Marcus Terentius Varro, ano 36–26 a.C., em seu tratado Rerum Rusticarum, lançou, pela primeira vez, o conceito de sustentabilidade, registrando que “[...] a agricultura é uma ciência que nos ensina que culturas devem ser plantadas em cada tipo de solo, e que operações devem ser feitas para a terra produzir os rendimentos mais altos perpetuamente” (Conway, 2003, p. 193). Nesse mesmo documento, Varro ainda referiu-se a “[...] algumas plantas que também devem ser plantadas, não tanto pelo retorno imediato, mas tendo em vista o ano seguinte, pois cortadas e deixadas sobre o solo, elas o enriquecem” (Conway, 2003, p. 269). 

Borst e Woodburn (1942) demonstraram, pela primeira vez, a eficiência da cobertura do solo, com palha, na redução da erosão e registraram que essa prática poderia controlar a erosão em até 95%. 

Hull (1951, p. 181) já comentava que, “[...] à exceção dos declives extremamente suaves, é infalível de ocorrer perdas devido à erosão pela água se o solo não for protegido por uma cober­tura vegetal”. Para tanto: 

[...] qualquer cultivo, enquanto funcionar como cobertura fechada do solo, é considerada como cul­tura-de-cobertura, tenha ou não sido plantada para esse fim. A acepção mais usual da expressão é, entretanto, algo mais restrita e definida, limitando-se às culturas plantadas com o objetivo precípuo de conter a erosão do solo, acrescentar-lhe matéria orgânica e aumentar a sua fertilidade (Hull, 1951, p. 181). 

Apesar de incorporar o termo cobertura do solo para o controle da erosão, preocupação não definida claramente dentro do conceito anterior, Hull (1951) recomendava o manejo das plantas de cobertura com arado para incorporá-las como adubo verde. 

No Brasil, os primeiros resultados de pesquisa que mostraram o efeito positivo da cobertu­ra do solo, com resíduos de culturas na redução da erosão, datam da década de 1970, no Paraná e, logo após, no Rio Grande do Sul. 

Visto que era necessário proteger o solo durante o período de ocorrência das chuvas mais erosivas, período esse coincidente com a época de preparo do solo e da semeadura das culturas de verão, agricultores e técnicos da região Sul do Brasil passaram a viabilizar um novo sistema de cultivo do solo. Esse sistema estava baseado em três princípios fundamentais: a cobertura permanente da superfície, o não revolvimento do solo e a rotação de culturas. Para isso, foi necessário evitar a queima da palha das culturas de inverno (trigo, por exemplo), evitar o preparo do solo mecanicamente, adaptar as máquinas semeadoras à nova realidade e incorpo­rar, definitivamente, a prática da rotação de culturas para viabilizar o cultivo de outras culturas comerciais em sequência planejada de cultivo e de plantas para cobrir o solo, em especial, com a sua palha (cobertura morta). Na busca pelo aumento da quantidade de palha sobre o solo e, por conseguinte, de cobertura para diminuir as perdas por erosão e recuperar os solos degradados pelo preparo inadequado, inúmeros trabalhos de introdução de espécies de adubos verdes de inverno e verão foram iniciados a partir de meados da década de 1980 (Mondardo et al., 1982; Derpsch et al., 1984; Wildner, 1990). 

Monegat (1981), com base nas experiências exitosas de técnicos e agricultores familiares da região oeste de Santa Catarina, lançou as bases do cultivo mínimo do milho (Zea mays L.). Nesse sistema, a ervilhaca-comum (Vicia sativa L.), usada como adubo verde, era manejada com o uso de um arado de tração animal (arado “fuçador”). Nessa operação, parte da cobertura verde era incorporada e parte afastada para os lados. Na área entre os sulcos, a ervilhaca-comum permane­cia vegetando até o final do ciclo, enquanto o milho, nas linhas, após a semeadura, desenvolvia-se normalmente. 

Em 1991, Monegat, lança o livro Plantas de cobertura do solo: características e manejo em pequenas propriedades, um marco para a viabilização de sistemas conservacionistas de solo, não só para propriedades familiares, mas para qualquer tamanho de propriedade agrícola (Monegat, 1991). 

A nomenclatura dos adubos verdes sofreu alterações em vários idiomas: em português, passou de adubos verdes para plantas de cobertura do solo; em espanhol, de abonos verdes para cultivos de cobertura; em inglês, de green manure para soil cover crops; em alemão, de gründünger para bodenbedeckungspflanzen; em francês, de engrais vert para plantes de coverture du sol. Já a prática passou de adubação verde para cobertura do solo (português/Brasil); de green manuring para soil cover (inglês); de gründüngung para bodenbedeckungs (alemão); de sideração para alfom­bra (português/Portugal); de fumage vert para coverture du sol (francês); e para cobertura de suelo (espanhol). 

Nesse novo conceito, foi dado um “enfoque físico”, pela presença da palha sobre a superfí­cie do solo (cobertura morta, cobertura do solo), minimizando o risco da erosão, e também pelo efeito secundário, durante a sua decomposição, na recuperação dos atributos físicos do solo, em especial da estrutura do solo. 

Em meados dos anos 1990, agricultores e técnicos passaram a discutir a viabilidade da integração lavoura-pecuária em virtude dos seguintes fatores: a consolidação do sistema plantio direto no Brasil, a incorporação da importância dos atributos biológicos do solo e, sobretudo, o desafio de diversificar as atividades agrícolas na propriedade e diminuir os custos de produção. Dessa forma, as espécies vegetais anteriormente usadas apenas como adubos verdes (plantas de cobertura do solo) passaram também a ser utilizadas como forragem para alimentação animal (ou, quem sabe, as plantas, originalmente forrageiras, utilizadas como adubos verdes e plantas de cobertura do solo, passaram também a ser utilizadas dentro de sua verdadeira vocação). 

Em 1992, um novo e amplo conceito de adubação verde foi lançado: 

[...] a utilização de plantas em rotação, sucessão ou consorciação com as culturas, incorporando-as ao solo ou deixando-as na superfície, visando a proteção superficial bem como a manutenção e melho­ria das características químicas, físicas e biológicas do solo, inclusive a profundidades significativas. Eventualmente, partes das plantas utilizadas como adubos verdes poderiam ter outras destinações como, por exemplo, produção de sementes, fibras, alimentação animal, etc. (Costa et al., 1992, p. 3). 

Esse novo conceito passou a ter uma “visão integral ou holística”, e atendia às demandas do solo (proteção e recuperação física, química e biológica), dos animais (forragens), do homem (alimentação, fibras, etc.) e do meio ambiente (diminuição dos impactos ambientais da agricultu­ra e o sequestro de carbono – C). 

A partir desse período, os adubos verdes (plantas de cobertura) ganharam maior impor­tância também pela grande expansão dos sistemas agroecológicos de produção, cujo objetivo era eliminar o uso de insumos externos à propriedade tanto para a adubação dos sistemas quanto para o manejo de plantas espontâneas. 

Dessa forma, o cultivo de plantas para adubação verde e cobertura do solo passou a ser um componente imprescindível para viabilizar qualquer tipo de sistema de produção sustentável, seja ele convencional, de transição ou agroecológico, assim como para o cultivo de qualquer espécie vegetal, seja ela para produção de grãos, fibras ou frutos, em cultivos extensivos ou in­tensivos (hortaliças), em cultivos anuais ou perenes, de clima tropical, subtropical ou temperado. 

Com o avanço dos estudos específicos sobre as espécies utilizadas e sobre os sistemas de manejo de cada uma delas, novas denominações foram registradas, embora elas deem mais ênfase a alguns efeitos importantes do seu cultivo. Assim, Barni et al. (2003) registraram a de­nominação “plantas recicladoras, recuperadoras, protetoras e melhoradoras” provavelmente para dar ênfase à capacidade de reciclagem, recuperação, proteção ou melhoramento do solo, das diferentes espécies; Carvalho (2005), Aguiar et al. (2006) e Spera et al. (2006) registraram a deno­minação “plantas condicionadoras” provavelmente para dar ênfase à capacidade das diferentes espécies em condicionar o solo a novos patamares de fertilidade (enfoque amplo). Apesar das novas denominações, a mais tradicional (adubo verde) e sua prática (adubação verde) parecem ser as que mais bem expressam o conjunto de tudo aquilo que se espera de uma espécie vegetal e de uma prática agrícola para a recuperação dos solos degradados ou para a conservação dos produtivos.


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