terça-feira, 31 de outubro de 2023

Histórico da adubação verde no Brasil


 

Introdução

A história é de extrema importância, pois, por meio dela, é possível resgatar o desenvolvimento do pensamento científico. No entanto, só é possível resgatar a história que foi registrada, seja por quem a viveu, seja por terceiros. Este capítulo é um passeio por esses registros.

A adubação verde é uma técnica muito antiga. Em toda a sua história, a revisão mais completa que se encontra é a do livro Green manuring: principles and practice1 (Pieters, 1927). Nesse livro, o segundo capítulo trata da história da adubação verde na China, na Grécia e em Roma, na Europa Medieval, na Alemanha, na Inglaterra e nas Américas, em diferentes épocas. Outro livro em que esse assunto se encontra de forma detalhada intitula-se Root nodule bacteria and leguminous plants2 (Fred et al., 1932).

A civilização chinesa foi a primeira a empregar a adubação verde visando à manutenção da fertilidade do solo. Embora não se tenham registros precisos da data em que essa prática foi iniciada, sabe-se que, na dinastia Chou (1134–247 a.C.), começaram a ser empregados, como adubos, os restos de cultura e vegetação natural dos campos cultivados. Segundo Pieters (1927), Chia Szu Hsieh, em seu livro Ts’i Min Yao Shu3, escreveu, 5 séculos antes de Cristo:

Para a adubação da terra, o “lu tou” (Phaseolus mungo, L. var. radiatus) é o melhor, e “siao tou”(P. mungo L. var.) e o gergelim estão em segundo lugar. Eles são semeados a lanço no quinto ou sexto mês e enterrados no sétimo ou oitavo mês. Seu valor como fertilizante é tão bom quanto o do excremento do bicho-da-seda ou do esterco de curral bem curtido (Hsieh citado por Pieters, 1927, p. 10).

Depois dos chineses, os gregos e os romanos empregaram largamente as leguminosas como rotação de culturas. A inscrição em latim Sator arepo tenet opera rotas, da época do Império Romano, encontrada nas ruínas de Herculano, tem o seguinte significado: “Agricultor sábio continua a executar rotações” ou “Agricultor sábio sempre faz rotação” (Bancos..., 2007a). Essa frase é considerada um palíndromo perfeito, pois pode ser lida na horizontal ou na vertical, inclusive de cima para baixo ou de baixo para cima (Figura 1), e, por isso mesmo, tem despertado a imaginação e a curiosidade de muitas pessoas (cristãos, numerólogos, escritores, mágicos, entre outros)ao longo dos tempos.

A observação dos resultados benéficos da adubação verde fez com que essa prática fosse utilizada por mais de 2 mil anos, sem explicação técnica ou científica sobre o motivo desses benefícios.

Posteriormente, alguns fatos e pessoas foram importantes para essa elucidação: primeiro, Lavoisier (1743–1794) descobriu a existência do nitrogênio no ar; depois, Pasteur (1842–1895) e Koch (1843–1910) desvendaram o mundo da microbiologia e descobriram as bactérias e parasitas.

Em seguida, Hellriegel (1831–1895) e Wilfarth (1853–1904) comprovaram que as nodosidades das raízes das leguminosas continham bactérias e que essas eram capazes de fixar nitrogênio do ar no solo em uma molécula orgânica; e, finalmente, Beijerinck (1851–1931) conseguiu isolar e cultivar esses microrganismos, demonstrando claramente sua função.

Adubação verde no Brasil

A prática da adubação verde foi introduzida nas Américas pela Inglaterra; com efeito, já no final do século 18, a adubação verde era praticada em Maryland e na Virginia (Pieters, 1927). Há relatos que, nesssa época, uma espécie vegetal, hoje reconhecida como feijão-caupi, foi utilizada como adubo verde. Segundo Pieters (1927), a primeira edição de um trabalho, denominado Farming with green manures, foi publicado em 1876, por Harlan.

Décadas de 1920 a 1940: adubação verde como benefício à fertilidade dos solos

No Brasil, os adubos verdes são conhecidos há pelo menos 100 anos. As primeiras informações técnicas sobre adubação verde foram publicadas por Gustavo Rodrigues Pereira D´Utra (Figura 2), no livro Adubos verdes: sua produção e modo de emprego (D’Utra, 1919). No texto, são descritos, de maneira clara e objetiva, os principais benefícios da adubação verde, essa milenar técnica agrícola. Nele, o autor destaca que:

Para se obter, porém, resultados satisfactorios em todos os sentidos, faz-se preciso semear plantas que estejam em relação com o clima e a natureza do terreno, que cresçam bem nos solos magros ou pobres e que tenham um systema foliáceo muito desenvolvido e rico em azoto, assim como uma vegetação rápida. Cortadas, quando preciso, e enterradas, ellas realizam estas duas vantagens ou condições sobremodo apreciáveis: reúnem nas camadas superiores os elementos mineraes dispersos nas do fundo, onde não são aproveitados pelas plantas alimentares, industriaes ou forrageiras de raízes curtas e cujo cyclo vegetativo é percorrido apenas em poucos mezes, e enriquecem a terra de princípios nutritivos, que se constituíram á custa do carbono, do oxygenio, do azoto e do vapor d´agua, todos tirados do ar. [...] A prática do emprêgo dos adubos verdes, porém, requer climas doces e humidos e terras leves,enxutas e pobres: ahi é que ella surte os melhores resultados (D´Utra, 1919, p. 6-7).

Em 1928, Theodureto de Camargo e João Herrmann publicaram a obra Contribuição para o estudo da adubação verde das terras roxas cansadas. Foi um dos primeiros indícios de que a agricultura, que, da forma como era praticada, esgotava a fertilidade do solo, precisava ser repensada e reformulada (Camargo; Herrmann, 1928).

Em 1925, o boletim Feijão de porco, escrito pelo diretor do campo de sementes de São Simão, SP, Henrique Löbbe, traçou um histórico e apresentou resultados de pesquisa com os adubos verdes: feijão-de-porco (Canavalia ensiformis) e mucunas (Mucuna aterrima). Em suas considerações finais, ele destaca:

Para alguns, parecerá que a adubação verde só traz a vantagem de fixar o azoto e fornecer materia organica ao solo. No entanto, é um facto que nas terras em que se cultivaram leguminosas a percentagem de acido phosphorico, potassa e cal soluveis é sempre mais rica do que em terrenos idênticos, em que se praticou a cultura de uma gramínea, por exemplo. [...] Ainda agora o prof. J. Aeroboc, da Escola Superior de Agricultura de Berlim, fez a descoberta de que as leguminosas “mobilisam” o acido fosforico contido em todos os solos, sob a fórma insoluvel, tornando-o solúvel e assimilável depois, pelas culturas que lhe succederem. Ora, para que melhor argumento a favor da adubação verde, sinão este: que além de suas plantas fornecerem de si próprias excelente composição para os solos, ainda elaboram e tornam aproveitável um elemento tão precioso á vida e que os demais vegetais não tem aptidão para utilizar em seu estado natural? É o adubo ao alcance do lavrador pobre e com o lucro previamente assegurado, o que não se dá com os corretivos químicos, os quaes além de dispendiosos, produzem muitas vezes resultados negativos, mesmo quando aplicados por entendidos, pois exigem uma serie de conhecimentos technicos, dependendo até, o seu exito, de que as circunstâncias do meio lhe sejam favoráveis na occasião! A adubação verde é incontestavelmente a adubação do Futuro, a que nos ha de enriquecer, por um preço irrisorio, os campos inaproveitáveis e revigorar as terras cansadas por culturas exhaustivas e continuadas! (Löbbe, 1925, p. 17-18).

Em 1932, o boletim Como obter o azoto barato para a agricultura, de Genesio Pacheco, destaca a importância do azoto (nitrogênio) para a manifestação da expressão de vida, seja ela animal, seja vegetal. Nesse contexto, ele destaca a importância das leguminosas:

Podem explicar muito bem a uberdade quase perenne de nossas terras tantas especies de leguminosas, pululando por toda a parte do nosso solo e enriquecendo-o de azoto, cada anno, com o seu trabalho constante e silencioso. É claro que nem todas ellas se prestam igualmente á cultura, visto serem muito variadas em seu talhe e ciclo vegetativo e não serem talvez portadoras de nodulos.

Preferivel, neste particular, são os feijões, vegetales de curta vida, ramagem reduzida, raizes superficiais e, ainda por cima, productivos. É o typo da leguminosa que serve aos nossos campos, cultivados entre as leiras de café, laranja e de outras plantas agrícolas de vegetação perene. Faceis De cortar e transportar, enriquecem o solo com a ramagem e com as raízes; desse modo, mesmo transportados, podem adubar outras terras e ainda deixar enriquecido o sólo onde foram cultivados (Pacheco, 1932, p. 21-22).

Notam-se, no texto, a proposição do uso dos adubos verdes em cultivo intercalar e a transferência de fertilidade (mediante o cultivo da leguminosa em área diferente) ao local de sua incorporação, ambas as soluções para viabilizar a adubação verde em culturas perenes.

Além disso, o boletim mostra resultados experimentais de soja com e sem inoculação, destacando as suas múltiplas aplicações:

Dentre os feijões que enriquecem a terra de azoto com seus nódulos bacterianos um existe, muito conhecido, destacando-se dos demais pela produtividade e, mais do que isso, pelas múltiplas aplicações que delle se fazem e para o qual há sempre mercado inesgotavel: é o feijão soja (Pacheco,

1932, p. 23-24).

Foi dito acima ser a adubação verde a mais importante applicação da soja á nossa agricultura.

Possivelmente não sobrepujará ella outras leguminosas neste particular. Tem sobre todas, porém, a vantagem de encontrarem os seus grãos colocação fácil nos mercados de toda parte, já a elles acostumados, dada a multiplicidade de usos que se lhe dão. Não se querendo plantar a soja, plantem-se feijões, amendoim ou outras leguminosas de curta vida, mas todas capazes de adubar o sólo, além de fornecerem grãos comerciáveis (Pacheco, 1932, p. 28).

No final do texto anterior, evidencia-se também a preocupação do autor em recomendar aos produtores rurais o uso de adubos verdes cujos grãos apresentem valor econômico.

Em 1933, o agrônomo Carmo Gomes Escobar escreveu:

A adubação verde é um dos métodos de melhoria do solo de importância capital e que, felizmente, tem sido bastante ventilado entre nós. Incorporar ao solo a matéria orgânica é aumentar o seu teor em húmus e, consequentemente, a sua capacidade para fornecer abundantes colheitas. Quanto mais tocarmos nesta tecla, tanto mais cumpriremos o nosso dever, certos de prestar grandes serviços a todos os lavradores que se dediquem com amor ás suas terras. O lavrador inteligente não despreza as oportunidades que se oferecem de se inteirar daqueles conhecimentos que lhes possam ser úteis e que se encontram nos conselhos do técnico (Escobar, 1933, p. 1).

Na Figura 3, veem-se as capas de algumas publicações brasileiras do início do século 20, cujos autores são D´Utra, de 1919, Camargo e Herrmann, de 1928, e Escobar, de 1933.

Em 1938, Carlos Teixeira Mendes, professor catedrático de agricultura da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), publicou o livro Adubos verdes (Figura 4), no qual discorreu sobre os experimentos realizados no Campo de Experiência, em Piracicaba, SP (Mendes, 1938).

Em seu trabalho, destaca a importância da matéria orgânica para o solo:

Enquanto apareçam alguns resultados contraditórios [...] os efeitos da materia orgânica são indiscutíveis; ella, representada aqui por uma das formas mais pobres em elementos químicos – o terriço –, elevou a produção da parcela respectiva de modo a ser comparavel à da de adubações azotadas [...]. Atente-se para o facto da maioria das nossas terras cultivadas serem permeáveis e acessíveis ao ar, serem ricas em ferro que poderá facilitar as oxidações e estarmos em clima quentes e com boas chuvas; tudo isso concorrendo para a evolução rapida e desaparecimento da materia organica, vae transformando principalmente as nossas terras roxas, cheias de vida, em terras esmaecidas, mais tenazes, menos productivas: terras cansadas, no dizer do caboclo descrente. [...] O seu corretivo mais natural será a materia organica; o vehiculo desta os adubos verdes (Mendes, 1938, p. 24-26).

O autor destacou ainda dois processos que vinham sendo realizados com grande sucesso na Fazenda Modelo, em Piracicaba, SP: o adubo verde como cultura exclusiva, isto é, ocupando todo o terreno, e o adubo verde como cultura intercalar. Há ainda um capítulo específico sobre as leguminosas como alimento para os seres humanos e outro relacionado às leguminosas como forragem.

Nas obras citadas, principalmente nas publicações do estado de São Paulo de 1919 a 1938, evidencia-se o uso da adubação verde com a compreensão do seu benefício à fertilidade do solo, pois esse era o principal problema encontrado na época. As terras tornavam-se cansadas depois de utilizadas na agricultura, como ficou claro por meio das reproduções textuais das publicações.

No ano de 1939, foi publicado o Boletim nº 26, da Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Indústria e Comércio do Rio Grande do Sul, o qual denotava uma compreensão mais ampla dos benefícios da adubação verde. O boletim intitulado Adubos verdes: o tremoço (Lupinus sp.) e sua aplicação no melhoramento das terras, de autoria de Outubrino Corrêa, destacava a importância da adubação verde para a lavoura rio-grandense:

Para salientarmos a grande importância da adubação verde para a lavoura riograndense, torna-se mister citarmos as suas incontestáveis vantagens, as quais afetam direta ou indiretamente a fertilidade das terras pelas modificações que operam sobre as suas propriedades físicas, químicas e biológicas (Corrêa, 1939, p. 11).

Nesse boletim, exaltam-se outras vantagens além das relacionadas à fertilidade do solo: 1º – Melhora as propriedades físicas do solo – a) Pela cobertura [...] b) Pelo enterramento [...] c) Pelas raízes [...] 2o – Melhora as propriedades químicas do solo [...] 3o – Melhora as propriedades biológicas dos solos [...] 4o – Como meio de combate às ervas ruins [...] 5o – Como cultura profilática [...] 6o – Como adubo econômico [...] 7o – Melhora as terras inclinadas [...] 8o – Fertiliza as terras “cansadas” [...] 9o – Como planta forrageira (Corrêa, 1939, p. 13-18).

Em 1947, o engenheiro-agrônomo Álvaro Ornelas de Souza escreveu o livro Recuperação das terras pela adubação verde (Souza, 1947). A obra é um verdadeiro apelo consciente ao uso da técnica de adubação verde, em contraposição ao que ele chamou de “hábito funesto do agricultor”, que:

Sorri desanimado diante da mesquinha remuneração do seu trabalho e explica simplesmente: “as terras estão cansadas”. Olha em volta, vê algumas magras capoeiras e pensa: “ali estão ainda umas terras gordas”. O machado e foice entram em ação. Remove-se a lenha. Queima-se o resto. [...] A isso teima chamar de prática. Prática não, hábito. E funesto. A êsse mau hábito, eivado de ignorância, preguiça e passividade, se deve a devastação, que cada vez mais se alastra (Souza, 1947, p. 42).

E o autor completa:

Em vez de derrubar as matas ou levar a devastação ao coração virgem do Brasil, muito mais simples e prático será reincorporar essas terras ao patrimônio agrícola, por meio da aplicação correta e inteligente da adubação verde. A terra da pátria já foi o bêrço, a vida e o túmulo de muitas gerações ancestrais, que tinham a ignorância como justificativa da destruição de ricas áreas. A geração presente não pode invocar tal atenuante, pois os segredos da fertilidade já estão quase que totalmente desvendados. Conservar essa fertilidade, deter a devastação do sólo pátrio, são um dever da geração atual, se não quiser ser julgada e condenada pela posteridade, se não quiser entregar um deserto às gerações do futuro (Souza, 1947, p. 54).

No estado de São Paulo, o pesquisador Romeu Inforzato, do IAC, realizou vários estudos com adubos verdes nas culturas do algodão e do café. Em 1947, ele publicou Estudo do sistema radicular de Tephrosia candida D.C. (Inforzato, 1947a), no qual destaca que:

Seria de grande interêsse conhecer a profundidade máxima das raízes de tefrósia, pois estas, translocando alimentos, deixam-nos em boa parte à superfície do solo. Seria de valor determinar o pêso aproximado de todo sistema radicular, pois, morta a planta, as raízes são deixadas como matéria orgânica no solo (Inforzato, 1947a, p. 49).



Figura 2. Gustavo Rodrigues Pereira D´Utra (pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas – IAC) chefiou a instituição de 1898 a 1906.

Capa do livro do professor Carlos Teixeira Mendes.

Em Nota sôbre o sistema radicular de guandu, Cajanus cajan (L.) Millsp., e a sua importância na adubação verde (Inforzato, 1947b), o pesquisador conclui:

Se bem que esta quantidade não seja desprezível, é pequena quando comparada com a matéria orgânica fornecida pelas partes aéreas [...]. Tem, porém, a seu favor, o fato de ser deixada já enterrada no solo, ser distribuída a uma maior profundidade e, pelo apodrecimento, deixar no solo um número elevadíssimo de canalículos, que, sem dúvida, muito concorrem para a melhoria da terra (Inforzato, 1947b, p. 126).

O autor publicou também Feijão guandu, Cajanus cajan (L.) Millsp. e as vantagens de seu emprego na adubação verde (Inforzato; Souza, 1947).



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